Inspirações musicais para uma fala SUA.
CADA VOZ
Tire sua fala da garganta
e deixa ela passar por sua goela
E transbordar da boca
Deixa solto no ar
Toda essa voz que tá aí dentro,
deixa ela falar
Você pode dar um berro
Quem sabe não pinta um eco
pra te acompanhar
Cada voz tem um tom
Cada vez tem um som
Ai, ai, ai, ai, ai….
A orquestra já tocou
E o maestro até se despediu
Todos querem ver você cantar
[Tulipa Ruiz]
https://www.youtube.com/watch?v=mv8jI3b3iGw
AVANTE
Desata o nó das entranhas
Se estica a musculatura
O pulmão força e sustenta
O ar na goela se apura
A língua recebe a carga
Larga depois que tritura
Desfeita a trava dos dentes
A boca escancara e canta
O rosto inteiro estremece
Em vez de sorrir, se espanta
Como um canhão que ribomba
Com ferrugem na garganta
Da mesma forma que o bafo
Precede o ronco da fera
Ou como a noite é parida
Da gravidez da cratera
A voz se esparrama aonde
Que até então não coubera
Os microfones parecem
Longas serpentes mutantes
Que copulam com as máquinas
Que acendem uns botões brilhantes
Ejaculando as descargas
De som nos alto-falantes
A lingua destila a seiva
Dos dentes da cascavel
O que os ouvidos recolhem
São fragmentos do fel
Que espirrou das marretadas
Que destroçaram babel
Um assovio solta um pássaro
Que rasga o espaço e voa
Que parte mas não retorna
Que ilumina quando entoa
Deixa sombra na lembrança
Mas já morreu quando ecoa
Palavras são como almas
Que a luz ampara e anima
Bailando desordenadas
Em baixo, ao lado e em cima
Refletidas nos espelhos
Dos vãos da casa da rima
Imagens são balões presos
Por um cordão que se tora
Porque poesia é presença
De um vulto que não demora
O canto espalha no vento
E o tempo desfaz na hora
Desarrochada a mordaça
Escancarada a masmôrra
Estourado o cativeiro
Balança o pau da gangorra
O carrossel solta as travas
A dama presa está forra
Na descompressão do grito
De liberdade e revolta
Se abriram os portões pesados
Um touro bravo se solta
Quem parte berrando: avante!
Pode cair mas não voltar
[Siba]
A VOZ DO DONO E O DONO DA VOZ
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
Fizeram bodas de acetato – de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz,
A voz resulta um prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes
Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó
Porém, a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar,
Queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz
Foi revelada na assembléia – atéia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel, trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: “Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém”
O que é bom para o dono, é bom para a voz…
[Chico Buarque]
(imagem da capa: Andres Sandoval)